domingo, 12 de abril de 2009

A descoberta da arte na era de sua reprodutibilidade técnica


Este texto deve, obrigatoriamente, fazer referência a Walter Benjamin, um dos principais teóricos do marxismo e um dos mais importantes estudiosos da sociologia da arte. Em um célebre ensaio “A obra de arte da era da sua reprodutibilidade técnica”, texto datado de 1936, o pensador alemão lançou as bases para o estudo da cultura de massas e fez uma relevante análise sociológica do cinema.


O que é a arte para uma criança pobre da periferia de uma grande cidade? A pergunta não deve ser feita apenas no contexto histórico atual, mas, retrocedendo 30 anos no tempo, dever ser feita em um período em que ainda não vivíamos o limite da “obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”.


Era 1978, eu tinha oito anos de idade e cursava o segundo ano primário na Escola Estadual XV de Novembro, atualmente chama-se Escola Estadual Escultor Galileo Emendabili.
Morávamos num cortiço, em uma casinha de tijolinhos; eram dois pequenos cômodos que, juntos, não mediam mais que doze metros quadrados; a altura não superava 1,90 metros, cobertos por telhinha francesa, a pequena cozinha não possuía janela, o quarto possuía um pequeno vitrô de 40X40cm, era muito abafado.

Aquela situação claustrofóbica era nova para mim. Eu tinha acabado de regressar do orfanato na cidade de Catanduva, onde permaneci dos três aos sete anos. Meus irmãos ainda estavam distribuídos: Rosangela, a mais nova, morava na casa de um tio paterno, no mesmo bairro, mas intransponível para uma criança de sete anos; Leodete estava no Paraná, na casa de um tio materno; Henrique e Sidnei, os mais velhos, estavam em um internato em Potim, cidade vizinha de Aparecida do Norte, no vale do Paraíba, noroeste de São Paulo. Minha mãe trabalhava como cozinheira em um restaurante, cujo prédio foi desapropriado pelas obras do Metrô paulistano. O restaurante ficava atrás do edifício da Fazenda Estadual, exatamente aonde hoje a linha do metrô, quando vindo da estação Dom Pedro I sentido estação Sé, mergulha sob a selva de concreto paulistana. Quando mamãe saía para trabalhar era madrugada, a viagem, do XV de Novembro, extremo leste da cidade, até o Parque Dom Pedro, naquele tempo, durava horas de sacolejo dentro do ônibus. Quando ela retornava passava da meia-noite. Eu quase que não a via e, por precaução, eu só era autorizado sair para ir à escola. Meu mundo era subdimensionado, quando saía as ruas imaginava que o limite do mundo era exatamente onde minha vista alcançava.
Naquele tempo o máximo de tecnologia que minha família tinha para reproduzir a arte, neste caso específico a música, era uma vitrola de madeira que, de tão pequena, quando tocávamos um long play pelo menos metade do disco girava fora da dimensão do aparelho. Minha mãe ouvia principalmente Odair José, Fernando Mendes e Waldick Soriano. Eu ficava olhando o disco de vinil girar e me indagando como o som saia dali, como se reproduzia, mas a principal reflexão referia-se a permanência da emoção que emanava das composições. “Eu você e a praça” e “Vou tirar você desse lugar”, do Odair José tinham uma capacidade especial de prender a atenção e emoção da minha mãe e, por conseguinte, minha própria emoção.


Era 1978. Naquele ano a escola organizou uma visita ao Teatro Municipal de São Paulo , ao que me recordo tratava-se de uma apresentação sobre a história da música desde a pré-história. Fomos de ônibus. Durante o caminho cantamos canções infantis e desafiamos o motorista a correr mais um pouquinho. No percurso renovei a minha percepção de quão grande era o mundo, percepção que havia se perdido na mediocridade dos dias. Chegamos ao Teatro Municipal e, logo na fachada, ainda na parte externa, o contato com a arquitetura clássica impressionou-me sobremaneira. O luxo e beleza da parte interna, dos salões aos acentos embebedaram-me. Lá dentro, depois de um tempo na escuridão, as cortinas se abriram e revelaram um universo inimaginável. O maestro, que sempre acreditei ser Isaac Karabtchevsky, diante da orquestra deu o sinal e, em segundos, meu mundo foi implodido, e o próprio significado de ser humano ganhou para mim uma nova dimensão. O som impactante, grandiloquente, absolutamente harmônico, transpassou todos meus órgãos, me arrancou lágrimas e fez vibrar cada músculo do meu corpo: Concerto para piano e orquestra Nº 1 em Si bemol menor, op. 23 de Tchaikovsky. Estava diante de algo que não sabia conceituar: a arte. Os sons aliado a arquitetura compunham naquele instante a revelação da arte , cuja existência e beleza jamais havia sequer suspeitado, muito menos experimentado. A arte não era ali uma reprodução, como nos discos de vinil da minha mãe, mas, produzida ali, naquele instante, no interior daquele templo dedicado à cultura e a humanidade, sua existência era única, assim como a impressão que deixaria em meu espírito. Em seguida executou-se “O Guarani”, vivíamos o fim do regime ditatorial e esta composição de Carlos Gomes era o som da vinheta de abertura da “Voz do Brasil”, algo que descobri somente anos mais tarde. A música de Tchaikovsky, porém, com sua plasticidade, grandiosidade e força permaneceram em minha alma. Desde então todas as formas de arte que experimento é uma tentativa infrutífera de tentar reproduzir, resgatar o prazer, o arrebatamento estético, a catarse experimentada no primeiro momento em que ouvi Tchaikovsky no Teatro Municipal de São Paulo. A lembrança estética que guardo daquele episódio é a referência mais próxima daquilo que convencionamlente entendemos por êxtase religioso e, naquela tarde, ao regressar para casa eu já estava convertido, tinha experimentado a grandiosidade e beleza do divino na minha própria dimensão humana.


Carlos de Andrade
escritor, autor do romance Chuva de Novembro


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